Os Cruzados #02: Viagem para a Morte

cruzados2

Agora eu apresento a vocês um dos outros personagens da história. Demenzel, o mensageiro.

Os Cruzados #02: Viagem para a Morte

O rapaz que aparentava ter cerca de vinte e três anos estava sentado sobre um toco de madeira, enquanto observava um mapa desgastado pelo tempo atentamente. Demenzel era o seu nome. Um nome famoso entre os mensageiros. Este rapaz fora o responsável por avisar que a Peste estava atacando um dos principais vilarejos da Inglaterra. Tinha um tipo de túnica cobrindo grande parte do corpo e uma calça para o frio, o clima que agora predominava.

Apesar de ser muito jovem e imaturo, Demenzel sabia bem os caminhos os quais ele deveria trilhar e sabia facilmente interpretar um mapa. Seus olhos eram pequenos, seu cabelo era bem cortado e deixava uma barba por fazer. Era um rapaz que despertava o desejo das mulheres do vilarejo de Oaksburg, uma terra ao norte de Espiritus-Sanctum.

Ouviu um som de passos atrás de uma pequena casa e viu sair dali o Padre Willibald. O velho manco chegou em pequenos pulos para facilitar o seu andamento e já disse:

- O que está fazendo ai sentado?

- Desculpe-me, padre. Eu estou analisando uma cópia do mapa perto da fronteira com a Ásia. Ali parece ser um lugar perigoso para pequenos comerciantes.

- Isso não é problema nosso. Vamos. O Grão-Sacerdote quer vê-lo.

Demenzel levantou-se rapidamente. Assuntos da Igreja sempre eram importantes.

Igreja dos Sacro-Santos da Inglaterra, 18 de Junho de 1125.

- Descobrimos hoje que eles estarão voltando para o condado de Essex ainda essa semana. Segundo eles, a batalha foi ganha. Agora você deve encontrá-los neste condado para que Balduíno tome a devida decisão.

- Sim, Senhor Grão-Sacerdote. Partirei imediatamente.

- Ótimo, preparamos um cavalo rápido e que pode carregar o suficiente de suprimentos para a sua viagem. O Condado de Essex fica a três dias de viagens daqui, sem contar o momento de descanso, que não deverá ser muito extenso, precisamos desses soldados o mais rápido possível.

- Sim, senhor. – disse Demenzel, se reverenciando pela enésima vez.

Com um gesto de mão do Grão-Sacerdote, o mensageiro entendeu que deveria partir. Os olhares perseguiram-no até o portão principal. Cochichando, os sacerdotes discutiam sobre a possibilidade daquela missão de entregar a mensagem fosse em vão e que o jovem poderia morrer no caminho, agora que as forças do Inferno estavam libertas.

Demenzel saiu do grande templo e foi até o estábulo, enquanto pensava seriamente se fizera bem em não discutir e aceitar o serviço de entregar a mensagem. Porém, a cabeça de um jovem de vinte e três anos nunca muda, ele queria continuar com o título de desbravador, e para isso, tinha que aceitar qualquer tipo de trabalho.

Afinal, ele não tinha nada a perder. Não tinha família, não tinha ninguém que se preocupava realmente com ele. Sua mãe fora morta numa invasão de alguns povos que continuavam a ser bárbaros, depois de tempos sem ouvir este nome. Só ele saiu vivo da sua vila.

Agora ele era apenas um mensageiro, nada mais. Continuou a caminhar até que o Estábulo alcançou sua visão. Começou a andar rapidamente e viu o cavalo que o esperava. Era branco, com a crina bem escovada e com os pêlos bem alinhados, diferente dos cavalos que agora estavam pastando pelos arredores da antiga Cidade da Inglaterra.

Montou nele e viu que ao lado direito de sua montaria pendia uma espada, enquanto do esquerdo, algumas bolsas com suprimentos para ida e volta. Em sua maioria, pão seco e água. Sorriu quando o cavalo se inclinou para que ele fizesse carinho.

Não demorou muito e ele partiu, deixando para trás uma vila que talvez nunca mais visse. Enquanto cavalgava, via os olhos atentos das mulheres com suas crianças.

Uma pequena jornada estava começando.

Arredores do Condado de Espiritus-Sanctum (Início da Jornada), 19 de julho de 1125.

A cavalgada já cansava os membros inferiores de Demenzel, que começava a ficar com a aparência abatida. Precisava descansar, seu corpo clamava por isso. Os pássaros voavam sobre a sua cabeça, davam pequenos rasantes e subiam ao céu novamente antes que atingissem o chão.

O cavalo estava cansado e Demenzel começava a sentir pena do eqüino. Seus passos eram lentos e aparentavam a falta de força que certamente estava dificultando a viagem.

- Já chega. Vamos descansar amigão. – disse o mensageiro, com um sorriso cansado na face.

O cavalo em resposta relinchou. O sol estava se pondo e as sombras se intensificaram. As árvores cercavam Demenzel e a montaria, e, receoso de que as histórias sobre as criaturas libertas fossem verdade, os olhos se tornaram mais atentos e assustados a qualquer farfalhar de uma moita.

Retirou da grande bolsa um pedaço de pão, enquanto o cavalo se alimentava de um pouco do capim que havia ali perto. O mensageiro tomou um gole de água para não comer o pão à seco. Enquanto isso, olhava para o horizonte. O sol tinha um brilho estranho, não era o mesmo de antigamente. Já estou começando a delirar, pensou ele, voltando sua atenção para o cavalo, que calmamente arrancava tufos do chão e mastigava lentamente.

Finalmente o sol sumiu e a lua assumiu seu turno. Um silêncio desconfortante fez com que Demenzel ficasse arrepiado e quisesse partir imediatamente. Correu até o seu cavalo e continuou viagem, logo depois de colocar toda a bagagem de volta ao lombo do animal.

Ele não viu, mas olhos vermelhos estavam à sua espreita, prontos para atacá-lo. Eram vários presentes nas sombras das árvores. A sensação de estar sendo observado atingiu Demenzel em cheio, fazendo-o achar aconchego ao colocar a mão no cabo de sua espada.

Uma das criaturas pulou para fora de seu esconderijo e começou a seguir lentamente o cavalo, que já começava a relinchar, pressentindo o mal que o cercava. Demenzel conhecia aquela floresta, era a Floresta Black Wood. Diziam que ali milhares de pessoas foram mortas. Por ora, o mensageiro não tinha visto a criatura esguia e de aparência mórbida que o seguia, como se fosse um cachorro, enquanto se parecia mais com um humanóide. Logo mais um se juntou à matilha. E mais outro, e mais outro. Em pouco tempo, a trilha estava cheia deles, e nenhum barulho para alertar Demenzel, que continuou sua travessia, ainda preocupado.

As aberrações tinham aparência de um ser humano bem machucado e com pedaços de sua carne pendendo, enquanto os músculos saltavam para fora e o mal cheiro, como uma carne em putrefação, inundou a narina do eqüino e de Demenzel, que retirou sua espada e girou seu cavalo para trás. Assim que viu o motivo pelo cheiro, girou o cavalo novamente e iniciou uma corrida pela vida.

- É amigão! Melhor correr! São ghouls[1]! Agora não me deixe na mão! Vamos! – disse o mensageiro para o seu cavalo, que levantou a orelha e se pôs a correr.

Os ghouls viam o eqüino aumentar a velocidade e assim decidiram atacar. Um deles pulou e conseguiu cair encima do cavalo, porém sua felicidade durou pouco, pois Demenzel girou sua espada para trás, cortando a cabeça da criatura. Nisso, outros ghouls pulavam, substituindo o irmão perdido.

O mensageiro batia nas costelas do animal, fazendo com que este corresse cada vez mais rápido. Uma das horrendas criaturas se aproximava cada vez mais do eqüino, que relinchava com a presença sombria que o cobria.

“Ótima maneira de começar uma jornada, faz um dia que eu deixei o meu aconchego e já estou enrascado.” Pensou o rapaz, que retirava hora ou outra sua espada da bainha, se sentindo mais seguro.

O ghoul pulou nas costas de Demenzel e tentou mordê-lo, porém este fora mais rápido e se jogou para frente e parou o cavalo, fazendo com que o demônio caísse metros à frente. Agora ele tinha que se apressar, os carniçais se aproximavam cada vez mais rápido, alguns lançavam ossos do próprio corpo para tentar acertar o mensageiro.

Demenzel girava a espada e conseguia com muito custo se defender, enquanto colocava o cavalo para correr, vendo assim a alucinante cena de centenas de ghouls correndo atrás dele para poder arrancar um pedaço de sua carne. Um pedaço de osso, um fêmur para ser mais específico, atingiu suas costas, fazendo com que ele soltasse um grito de dor.

Ele caiu no chão com tamanha dor e viu o cavalo partir em disparada com todos os suprimentos.

- NÃO! – gritou o mensageiro, sabendo que não iria escapar com vida.

Os carniçais o cercaram. Vieram aos montes. Demenzel se levantou e pôs a espada à frente do corpo. Girava nos calcanhares para que não o atacassem pelas costas, o que uma hora iria acabar acontecendo. O primeiro ghoul pulou sobre ele e foi cortado no ar, enquanto os outros aproveitavam para acabar com o círculo fechado que o mensageiro havia imposto.

Demenzel não teve chance de sobreviver. Os seres horripilantes cobriram o seu corpo e começaram a morder sua pele. A dor se alastrava por todo o seu corpo, ele podia sua perna ser separada de seu corpo, logo seu braço também. Ele não podia gritar, pois o sangue enchia sua boca e o fazia engasgar. Apenas assistia aquela cena, enquanto seus membros eram cortados.

Por que não morria logo? Por que tinha que ficar sofrendo daquele jeito? Ele não sabia. Não tinha resposta para aquela pergunta. Engolindo um pouco de sangue, ele gritou:

- NÃÃÃO!

E então acordou.

Estava ofegante e suava muito. Olhou para os lados e percebeu que estava sozinho no meio da selva, o estalar da madeira flamejante era o único barulho ali presente, além do vento e o balançar dos galhos. Folhas caíam ao redor do pequeno acampamento.

Ainda assustado, procurou pelo cavalo, que aparentava estar dormindo, pois estava parado e com a cabeça baixa. A respiração calma do eqüino se abateu sobre Demenzel, que se recostou na árvore e tentou voltar a dormir, mesmo sabendo que poderia ser atacado ou ter aquele horrível pesadelo de novo.

Porém ele conseguira dormir sem mais nenhum problema.

Floresta Black Wood, 20 de julho de 1125.

O dia amanhecera chuvoso. Uma camada grossa de nuvens negras se formavam no céu e o frio açoitava o rapaz. Parecia que alguma coisa não queria que ele entregasse a mensagem. Sorriu quanto à possibilidade de estar ficando louco. O cavalo andava calmamente, enquanto a cada passo na relva levantava uma grande quantidade d’água, devido às possas.

Depois de um longo tempo, o cenário mudou. Não era mais uma floresta densa que o cercava. Logo à frente, rochas caídas para todos os lados, lugares onde ninguém ousaria entrar. Não ousariam, pois um passo em falso e eles cairiam pelo penhasco que cercava esse lugar rochoso. Demenzel bateu levemente a mão na crina do animal e começou a cavalgar, agora com a atenção redobrada.

Dos dois lados um enorme penhasco que parecia não ter fim se abria, aumentando o risco do mensageiro não entregar sua mensagem. O cavalo bem sabia disso e começou a andar lentamente, parecendo prestar atenção em cada passo. Demenzel suava frio, estava com medo, por mais que odiasse admitir. Mas não podia falhar agora. Precisava ser persistente e acabar com estas barreiras que se fechavam para que ele não conseguisse êxito em sua missão.

O rapaz parou por um minuto e retirou um mapa da bolsa lateral que o cavalo levava. Olhou o pedaço de papel atentamente e tentou se encontrar. Passou levemente o dedo sobre a representação da floresta Black Wood e desceu até o que parecia ser uma cópia fiel daquele cânion da morte. Por cima dele estava marcado o nome Caminho das Pedras da Morte. Qualquer um poderia ter se borrado de medo por saber agora o nome daquele lugar assombroso. Porém ele apenas amassou o papel agora molhado por causa das pequenas gotas da chuva e guardou na bolsa novamente.

O caminho para que o cavalo passasse era bem estreito, mas teria de servir. Enquanto Demenzel comandava lenta e cautelosamente o eqüino, ele ia pensando sobre como aqueles soldados pudessem ter chegado tão rápido ao seu destino. Não sabia a resposta. Na verdade, não conhecia tão bem o nível de locomoção dos cruzados, portanto não podia opinar.

O cavalo pisou em falso e deslizou sua pata numa pedra achatada. Demenzel jogou o peso para o lado oposto, fazendo com que o cavalo tentasse recuperar o equilíbrio. Com muito pesar e com o coração na mão, o eqüino voltou a andar como se nada tivesse acontecido. Demenzel estava pasmo. Olhou para o lado e viu o abismo escuro que se estendia até onde seus olhos podiam alcançar.

Olhou para frente e sentiu um alívio ao ver que aquele caminho mortal estava acabando. Mais um pouco e ele estaria a salvo novamente. Riu quando pensou nessa hipótese. Sabia que não iria estar a salvo. Algo muito poderoso não queria que ele chegasse ao seu destino e agora o mensageiro pensava que talvez a força maior iria ter êxito.

A chuva parou. O sol viera rapidamente, limpando o solo e aumentando a visibilidade. Agora que ele chegara a um lugar mais firme e mais seguro, Demenzel bateu duas vezes nas costelas do animal que começou a correr rapidamente. Depois do terrível pesadelo que ainda assolava a sua memória, o rapaz não queria mais descansar, mas sabia que o cavalo precisava descansar, isso se o mensageiro quisesse entregar sua mensagem no outro dia, e não tivesse que contar com sua força para carregar toda a bagagem assim que o animal morresse de cansaço.

Por isso, depois de três quilômetros de corrida, ele decidiu parar. Deu uma carinhosa tapa na cabeça do animal e disse como se conversasse com igual:

- Vamos descansar, amigão. Deve estar cansado, não? Ah! – exclamou Demenzel quando achou um lugar com sombra. – Achei o lugar perfeito.

O cavalo entendeu o recado e começou a andar lentamente em direção à sombra que o rapaz havia achado. O sol já estava se pondo. Demenzel precisava procurar madeira para não passar frio e ser atacado desprevenido, sem ver seu inimigo.

Por isso andou pelos arredores até encontrar um pequeno conjunto de árvores. Assim que pegava os galhos secos, que queimariam mais facilmente, ele começou a pensar que desde que iniciara sua viagem, não se deparara com nenhum vilarejo. Voltou ao pequeno acampamento e largou os galhos no chão. Pegou o mapa e o analisou. Percebeu então que ele deveria ter passado por pelo menos três vilarejos durante esta viagem. Achou estranho.

Algo de muito ruim estava acontecendo. Onde estariam os vilarejos? Essa pergunta assolou a mente dele enquanto este ouvia o som da madeira estalando. Colocou as mãos sobre os joelhos e olhou aquela chama que subia até a altura dos joelhos do cavalo, que agora pastava e que daqui um tempo com certeza iria dormir.

Não demorou muito e ele caiu no sono. Estava cansado. Enquanto dormia, seu cérebro tentava processar lentamente uma pergunta que ainda atingia Demenzel com muita força. O tempo estava passando rápido demais. Esse pensamento acarretou em mais um pesadelo, mais real desta vez.

Ele estava rodeado de olhos vermelhos, alguns esguios e caninos, outros mais humanos. Em seu pesadelo, ele se levantou e desembainhou a espada, girando-a para se proteger dos milhares de seres que o rodeavam. Lentamente, um ser estranho se aproximou dele. Tinha asas de morcego e coloração avermelhada, chifres grandes davam voltas em sua cabeça. Em sua testa, um pentagrama invertido. Suas mãos cheias de veias saltadas seguravam uma enorme espada que de longe parecia ser de pedra. Seus pés (ou patas) eram como a de um réptil, mas muito mais amedrontadora. Ele exalava um cheiro de enxofre que atingiu o nariz do rapaz, de modo a fazer com que Demenzel tivesse náuseas.

Aos poucos, o mensageiro levantou-se e apontou a espada (que próxima daquele ser estranho parecia inofensiva) e proferiu palavras para amedrontar seu inimigo.

- Saia de meu caminho, ó criatura demoníaca. Não temo vossa aparência e muito menos tua espada. Sou protegido, pois creio no Senhor. – Demenzel tinha uma face de bravura anormal.

- Achas mesmo que podes contra Balor? Vossa aparência esguia e fétida não se amedronta nem um cão imundo. Ruma de volta à tua casa, e tua vida será poupada. Continue neste caminho, e tu e teus amigos ireis morrer pela espada Chama Mortal. – disse o demônio que se intitulava Balor.

Demenzel continuou a encará-lo e se lembrou dos ensinamentos dados pelos monges de sua terra natal. Sobre as criaturas que habitavam o nosso pesadelo e que viviam aos montes no Inferno. Tal lembrança o fez tremer. Tudo o que acontecia naquele pesadelo era surreal, mas ao mesmo tempo tão real que até mesmo o bafo da criatura provocava anseios no rapaz.

- Não adianta me ameaçar, Balor. Pois tua vinda até aqui é em sonho. Nem demônio tu és. É um maldito Guardião dos Portões do Inferno. – as palavras encorajadoras e angelicais brotavam da boca de Demenzel, fazendo com que até mesmo ele se impressionasse com tal habilidade.

O mensageiro apertou firmemente o cabo da espada e esperou a resposta do demônio. Nada mais foi dito. Balor se virou e abriu suas asas de morcego. Alçou vôo e olhou mais uma vez para baixo, nos olhos do rapaz, que aguardava qualquer movimento brusco.

- Em breve perceberás que este foi um erro grave, jovem mortal.

E assim ele sumiu. Assim como todos os outros demônios.

Demenzel acordou ofegante e molhado. Olhou para os lados, sua visão ainda estava desgastada. O cavalo ainda pastava, tornando ora ou outra a beber um gole da água presente em alguns cantos, devido à chuva passada. Adormeceu novamente, e nenhum outro demônio apareceu para afugentar-lhe o sono tranquilo.

No dia seguinte ele acordou tarde, cerca de onze horas da manhã. Cavalgou pela metade do tempo e resolveu parar. Ao longe, o som de vozes exaltadas e gritos. Gritos de pavor e dor. Gritos de morte.

Ele havia chego. Talvez tarde demais.

Continua...

Shadow


[1] São como zumbis, mas também são chamados de carniçais.

Essa história é protegida pelos direitos autorais.

Nenhum comentário: